sexta-feira, 19 de março de 2010

Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher.

Por Leidimar Murr*

A briga entre os Estados Unidos e o Irã é uma briga que tem, como pano de fundo, uma disputa entre civilizações: a ocidental e a islâmica. Disputa esta fundamentada em concepção de mundo que, embora ultrapassada no campo das idéias, até mesmo por boa parte da população do Oriente Médio, carrega para o plano das relações internacionais a concepção arcaica que permanece culturalmente viva e se manifesta tanto em simbolismos cotidianos como em decisões políticas de interesse para a comunidade internacional.

Atente-se que o Brasil não representa, no imaginário político do Oriente Médio, nem uma civilização nem a outra. Nem por isso, no entanto, tem garantido o papel de neutralidade que o Excelentíssimo Presidente Luis Inácio Lula da Silva quer se atribuir. Vale lá por aqueles lados o ditado: quem não é por mim, é contra mim.

Diferentemente do Brasil, o Irã de Mahmoud Ahmadinejad não é cheio de muros e muretas onde se possa, convenientemente, permanecer, até mesmo por todo um mandato político, como é de praxe acontecer no Brasil.

A disputa entre Estados unidos e Irã é uma briga de entes que se complementam e, em assim sendo, são opostos. Nessa linha de instabilidade entre a complementaridade e a oposição está assentado um conflito de milênios onde a intromissão do Brasil é algo pateticamente ridícula. É como ver uma criança se aproximar da jaula do leão no zoológico. Não se pode deixar que a criança corra livremente sem a intervenção de um maior. É preciso muito cuidado, pois como dizem os mais velhos: criança às vezes cega a gente; e diante de sua ingenuidade ousada e sua falta de capacidade intelectual de avaliar adequadamente o perigo pode por em risco a si e aos outros.

* Leidimar Murr é médica, Doutora em Bioética e Professora.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Assú: Casa dos Conselhos

Por Paulo Maycon*

Poucas gestões preocupam-se em democratizar a administração pública, conquanto a ordem jurídica nacional estimule a gestão participativa.

O parágrafo único do artigo 1º, da Constituição de 1988, prevê que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. O parágrafo 3º do artigo 37, determina a participação do usuário na administração pública direta e indireta. O artigo 198, inciso III, impõe a participação da comunidade na organização do Sistema Único de Saúde (SUS). E quando trata da política de assistência social, o artigo 204, inciso II, estabelece como diretriz a “participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”.

Os conselhos são órgãos colegiados de composição paritária com representantes do poder público e da sociedade que viabilizam a participação da comunidade na gestão pública. Por exemplo, o Conselho Municipal de Saúde (CMS) desempenha importante papel da gestão da saúde. Previsto na Lei Federal 8.142/1990, compete ao CMS fiscalizar, planejar, propor e controlar os recursos destinados à saúde previstos no orçamento do Município, bem como propor o Plano Municipal de Saúde.

No mês de março, noticiou-se uma inovadora iniciativa da Prefeitura Municipal do Assú, município da região central do Rio Grande do Norte. De acordo com o propósito constitucional de viabilizar a gestão participativa e democrática da administração pública, o Prefeito Ivan Júnior inaugurou a Casa dos Conselhos.

De maneira econômica e inteligente, o que exatamente se espera de um gestor com poucos recursos para administrar, dotou de estrutura um espaço integrado para o desempenho das funções do Conselho Tutelar, do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, do Conselho Municipal de Saúde e do Conselho Municipal de Assistência Social.

Agora, cada conselho possui um espaço administrativo individualizado, enquanto todos usam de forma cooperada o espaço destinado às reuniões. Essa disposição, inclusive, propiciará a ação integrada desses colegiados, até porque um problema social repercute noutro. É certo que muitas vezes os problemas sociais reclamam soluções coordenadas de diversos setores da administração.

E, na medida em que os referidos conselhos se interagem, haverá melhores proposições à solução das respectivas problemáticas, tudo de acordo com a concepção moderna de administração em rede.

Ilza Araújo Leão de Andrade, Pós-doutora pela University of New England e professora da UFRN, em seu estudo sobre “poder municipal e governabilidade”, escreve que “o desenho de todas políticas de natureza social no Brasil, hoje, inclui a constituição dos Conselhos Municipais”. E mais à frente, a pesquisadora encerra dizendo que “os entraves colocados ao real funcionamento das instâncias participativas de gestão – os Conselhos Municipais – têm agudizado o problema da governabilidade, porque o processo de descentralização das políticas sociais no Brasil exige, dos municípios e estados, a constituição dessas instâncias, para que se viabilize, de fato, a transferência de recursos, uma vez que estes serão atrelados às propostas formuladas pelos próprios Conselhos.

Assim, se não há Conselhos, ou se estes não funcionam, não há propostas e, consequentemente, não há recursos para serem aplicados na prestação dos serviços, agudizando problemas de governabilidade”.

Por justiça, essa iniciativa da prefeitura municipal do Assú, comandada por um jovem gestor, de estruturar de maneira integrada e inovadora os conselhos municipais pertinentes à área social, merece registro na imprensa estadual e nacional. É digno de todos os aplausos, tanto o gestor, quanto a sua equipe, ao entenderem que a democratização do processo de decisões, de um lado melhora a governabilidade, e do outro permite implantar com eficácia políticas direcionadas ao bem estar, desenvolvimento e justiça social.

Paulo Maycon é Defensor Público do Estado do RN.

segunda-feira, 15 de março de 2010

A cura de Schopenhauer e a mediocridade da vida moderna.

Por Kennedy Diógenes*

Questões como o enfrentamento da morte, a mudança de perspectiva de prioridades e a finalidade da vida são tratadas com maestria no livro "A cura de Schopenhauer", do Psiquiatra e escritor americano Irvin D. Yalom.

Neste livro, um Psiquiatra chamado Julius Hertzfeld descobre que está com melanoma, um tipo de câncer de pele letal, estimando, sua vida ativa, no máximo em um ano, fazendo-o deseperar. Ao fazer um balanço de sua vida, Julius resolve buscar seus antigos pacientes e checar se a sua terapia os havia ajudado. Assim, Dr. Hertzfeld se reencontra com o seu mais estrondoso fracasso: Philip Slate, doutor em filosofia e "discípulo" de Schopenhauer, que necessita do seu antigo terapeuta para que o supervisione em sua nova função como Orientador Filosófico.

Julius atende ao pedido de Philip com a condição de que este o acompanhe em um Grupo de Terapia mantido pelo preceptor há anos, o que propicia mudanças profundas nos relacionamentos de todos os membros.

Os dramas pessoais, os encontros e desencontros, as angústias e sofrimentos humanos, o sentido e a fugacidade da vida em descompasso com a "perenidade da morte", além dos conceitos de fé, são a argamassa com a qual Yalom contrói o roteiro desse livro, sensibilizando o leitor e o envolvendo, convidando-o a pensar sobre suas próprias questões pessoais.

Em virtude desses assuntos discutidos em "A cura de Schopenhauer", lembrei-me de um texto que escrevi há uma década, que tratava justamente do enfrentamento da morte e mudança de perspectiva , a qual transcrevo abaixo, intitulado de Mediocridade da vida moderna:

"Mediocridade da vida moderna.

Você é casado, tem filhos lindos, saudáveis, bem educados, e uma mulher magnífica que o apoia e o motiva diariamente. Porém, você vive eternamente preocupado com trabalho, status, etc.

Envolveu-se demais com seus negócios, onde despende uma energia enorme para manter e aumentar seu patrimônio. Está preocupado porque não trocou de carro este ano, enquanto todos os seus amigos já o fizeram; porque Fulano e Sicrano falam mal de você; porque Beltrano viajou para o exterior e saiu no jornal de Domingo e você não...

Estas preocupações e milhões de outras deturparam a sua visão da vida e o distanciaram de seus entes queridos, de sua mulher, filhos e de você mesmo.

Entretanto, acontece um milagre. Num acesso de raiva por perder um negócio, você passa mal e vai ao médico. Após os exames, o diagnóstico: Câncer. Neoplasia maligna. 'Tempo de vida restante estimada em 3 meses', é o que você ouve do seu médico sem esboçar qualquer reação, distante quanto um sonho rápido em um cochilo.

Você acorda na manhã seguinte e observa o azul do céu com espanto. Talvez nunca tivesse visto céu mais azul. Viu borboletas! Aquelas que você perseguia na sua infância. Levantou-se e encontrou seus filhos dormindo no quarto ao lado. Nunca tinha observado a beleza de deitar dos seus queridos. Nunca ouviu sequer a respiração deles enquanto dormiam. E achou tudo isso muito belo. Foi a cozinha e encontrou sua esposa que o esperava como toda manhã, mas foi nesta que percebeu que havia ali sempre um grande sorriso, um brilho nos olhos dela que o envergonhou por não ter percebido antes o quanto ela o amava e o admirava. E você se sentiu acolhido, protegido.

Entrou na sua biblioteca e se assustou com a quantidade de livros que tinha. A maioria você jamais abriu. Colocou um CD de canto gregoriano e se deleitou com um livro de Platão. Abriu numa página e lá estava uma frase que chamou sua atenção: 'Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz'. Leu e chorou...

Você percebe agora que toda a sua vida foi vivida como apenas sombras projetadas na caverna que você criou, fugindo da luz, fugindo do que realmente é importante. Nunca viveu até o momento de morrer, e que somente a perspectiva da morte, para você, devolveu-lhe a liberdade.

Você morreu três meses depois desta manhã. Foram os três meses mais felizes da sua vida, que, feliz verdadeiramente, compartilhou com todos nós, apresentando-nos um outro alguém que jamais havíamos conhecido; que sempre desejamos e nunca se havia apresentado; que será este, o moribundo feliz e não o saudável sisudo, que ficará em nossas mentes e corações.

Você foi em paz e nos deixou dois exemplos: o primeiro é de como morrer em vida; o segundo, de como viver morrendo.

Muito obrigado por tudo, Pai.

Seu Filho".

* Kennedy Lafaiete Fernandes Diógenes é advogado e articulista.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Os desafios de um CDC vintenário

Por Kennedy Diógenes*

Neste ano, além da Copa do Mundo e das eleições, que mobilizarão grande parte da atenção dos brasileiros, ocorrerá também, embora que toldado por esses eventos, o vintenário de instituição do Código de Defesa do Consumidor, criado pela Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, em resposta às previsões constitucionais erigidas no art. 48, da Constituição Federal.

Quando passou a viger, em 12 de março de 1991 (cento e oitenta dias após a sua publicação), o Código de Defesa do Consumidor flagrou um comércio inflacionário, estigmatizado pelas odiosas maquinetas de remarcar e seu indefectível operador, planos econômicos desastrosos, e um profundo, enraizado desrespeito ao cliente, sendo este considerado, para imensa fatia dos setores produtivos, apenas como uma bolsa de moedas ambulante.

Importante lembrar que há duas décadas, o celular era coisa de outro mundo, que atraía filas enormes para a sua aquisição; o telefone fixo era um bem valioso, de demorada entrega, com direitos à ações de suas companhias, assim como a energia elétrica, à guisa da Eletrobrás e de seu doloroso calote, tendo sido ressucitada, recentemente, a discussão de sua reinauguração pelos braços invisíveis de José Dirceu; os veículos, e nisso Collor acertou, eram verdadeiras carroças; as instituições bancárias, as seguradoras, os planos de saúde, pululavam em todos os rincões, vendiam o que tinham e o que não tinham, e fechavam às portas impunemente; a internet engatinhava, o comércio eletrônico quase inexistente, não havia msn, TV a cabo ou rádio acessíveis à classe média...

Por estas razões, houve uma epifania na recepção do CDC, que representaria uma redenção de uma massa de clientes, carreando, em seu bojo (art. 6º, CDC), os direitos básicos do consumidor, que são a proteção da vida, saúde e segurança; educação para o consumo; informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços; proteção contra publicidade enganosa e abusiva; proteção contratual; indenização; acesso a Justiça; facilitação de defesa de seus direitos; qualidade dos serviços públicos, dentre outros princípios que reconheceram a vulnerabilidade do consumidor e a necessidade de proteção pelo Estado.

E de fato, o surgimento de uma legislação consumerista própria desencadeou várias medidas, como a implementação do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (Decreto 2.181/97), a criação de agências reguladoras setoriais, dentre outras, que visaram estabelecer limites nas relações de consumo, tanto para o consumidor, que saberia o que deveria ter, como para o fornecedor, que teve clarificada a expectativa daquele, entregando exatamente o que o consumidor esperava.

No entanto, apesar desses vinte anos de existência do CDC e de todos esses avanços, empresas brasileiras dos mais diversos setores econômicos carecem, pelo menos é o que parece, de inteligência, pois continuam a corromper os princípios consumeristas sistematicamente.

É o caso dos campeões de reclamações no site www.reclameaqui.com.br, que elenca, em 1º lugar, a Tim Celular, em 2º, a Claro, em 3º, a Americanas.com e em 4º, o Mercado Livre. Neste rol indigno de um "Oscar" figuram, quanto aos segmentos, a Telefonia fixa/móvel, Lojas virtuais, Indústria de eletroeletrônicos, instituições financeiras, cartões de crédito e empresas de fornecimento de energia elétrica e água.

Sabe-se que, na verdade, os fornecedores somente infringem o CDC porque desenvolvem um pensamento torpe, como, por exemplo, estas que descumprem as regras do Serviço de Atendimento ao Consumidor, regulamentadas através do Decreto nº 6523/08: se descumprir a lei, a infratora ganha 95% do custo para cumprí-la, pois somente 5% dos consumidores reclamam. Mas esses fornecedores se esquecem de que estes 5% de consumidores não são sempre os mesmos. É que o consumidor, mais bem informado e preparado, passa a adquirir produtos e serviços da concorrência. Algum tempo depois, naturalmente, a empresa "sabidinha" não consegue mais vender como antes, entra em dificuldades e se torna insolvente, levando para o ostracismo as suas "fantásticas idéias".

Em razão disso, o cerco está fechando para estas empresas. Informa, a Revista Eletrônica Consultor Jurídico (www.conjur.com.br), edição de 08 de março de 2010, duas novidades para o consumidor: a primeira trata da notícia de que uma comissão especial na Câmara dos Deputados voltará a analisar o Projeto de Lei 5.476/01, do Deputado Marcelo Teixeira (PR-CE), que proíbe a cobrança da assinatura básica da telefonia, apesar desta cobrança ter sido considerada legal pelo STJ; a segunda informa que o Ministério Público Federal e Caixa Econômica Federal firmaram um TAC - Termo de Ajustamento de Conduta, para que os extratos emitidos para os clientes tenham, até o dia 1º de julho próximo, todos os dados necessários para identificar os estabelecimentos comerciais favorecidos nas transações de compra de cartão de débito, sob pena de multa diária de R$ 50 mil.

Até mesmo questões envolvendo o ciberespaço têm suas resoluções através do Judiciário, como a notícia veiculada pela Revista Jurídica acima referida, de que o Google foi condenado a pagar a uma mulher uma indenização de R$ 30 mil por danos morais, porque ela teve um perfil falso no site de relacionamentos Orkut, considerando, o TJ fluminense, que a empresa poderia ter evitado o dano.

Assim sendo, embora este "Código garotão" tenha alguns arranhões das resistências inglórias, é inegável o reconhecimento de avanços significativos que beneficiaram o consumidor, premiaram as empresas de boa prática com fidelização e longevidade, re-equilibraram as relações de consumo e conduzirão a um caminho onde, no futuro, prevalecerá a probidade, a lealdade e a honradez que, no passado, foram representadas pela palavra e por um fio de barba.

Portanto, assopremos as velinhas.

* Kennedy Lafaiete Fernandes Diógenes é Advogado, sócio do Escritório Diógenes, Marinho e Dutra Advogados, Coordenador de Planejamento da Defensoria Pública do Estado e membro do Conselho Estadual de Defesa do Consumidor.

domingo, 7 de março de 2010

Concepção de Justiça e Sistema de Cotas.


Por Leidimar Murr*

O que significa a crescente onda de reivindicações no Brasil por justiça social? Por que as reivindicações por sistemas de cotas, no lugar de contar com amplo consenso social e político tem causado mais polêmica que sossego? Porque no Brasil o conceito de justiça está equivocadamente atrelado ao ultrapassado conceito de justiça por igualdade de resultados. Ultrapassado não na forma dos modismos que freqüentemente tomam conta da sociedade brasileira. Ultrapassado por ter sido abandonado pelas democracias contemporâneas com base nas duras experiências que a história deixa como legado.

Os homens não são iguais. Justiça não é querer igualá-los à força. Justiça não está nos fins e sim nos meios. Justiça não está em impor uma igualdade impossível, mas, sim, em dispensar tratamentos iguais. Ou seja, todos devem ser tratados iguais, »inclusive perante a lei«, a despeito das desejáveis e maravilhosas diferenças individuais.

Tratamento digno e igual não é compatível com igualdade de resultados. O papel do Estado não é impor, por meios legalistas, igualdade de fins, mas sim providenciar por mecanismos legítimos de políticas públicas para que aquele cujas diferenças tenham levado a uma situação de desigualdade associada à desvantagem social possa usufruir de uma vida humanamente, socialmente e politicamente digna. Apesar de não se pretender com o presente texto encontrar respostas para todas as questões aqui levantadas, entende-se que são questões que merecem chegar à sociedade brasileira. Não pode ser tabu se questionar a concepção de justiça que o Brasil vem adotando. Esse é o momento. Se não é pretensão aqui encontrar as respostas para as perguntas lançadas, o é inaugurar esse momento.

No Brasil, eu me arrisco a afirmar, só há uma forma de efetivamente se fazer a tão esperada justiça social. Certamente não será por meio de leis e cotas, mas por mecanismos que visem à consolidação das instituições que compõem o Estado Democrático de Direito. Para consolidá-las é preciso que lhes favoreça o cumprimento de papel institucional. Que se busque a competência na realização de suas funções e a observância de que cumpram estas funções. Urge o questionamento das instituições e seu papel, reivindicação consensualmente e constitucionalmente expressa pelos Estados Democráticos de Direito, dentre os quais o Brasil. É do Estado administrativo de que carece o Brasil.

Esse lançar propostas de cotas para todos os lados desvia o foco do aspecto mais urgente e central às democracias contemporâneas de economias emergentes, que é a consolidação institucional. Passa-se a questionar as inferências das decisões políticas (no sentido amplo da palavra) sobre essas instituições, instituições que sequer apreenderam ou aprenderam seus papéis. Basta que se tomem como exemplo os casos recentes de promotores que em atitude abusiva prende mães de alunos que faltaram a aulas, ou mantém sob ameaça, adolescentes, impedindo-os de transitar às ruas determinados horários.

Pergunta-se: há crianças de Rua no Brasil ou pelo menos nessas cidades onde se tomou atitude tão ousada? Se houver, cabe a todo pai e mãe que tem que manter seu filho impedido de sair em determinado horário processar também o Estado. Pergunta-se: as escolas onde estudam as crianças que faltaram e tiveram suas mães privadas de liberdade em delegacias dispõem de quantos mestres competentes para o ensino? As crianças estão em segurança? Entenda-se que aqui não se trata de apologia a falta à escola ou à defesa de crianças tarde da noite perambulando pelas ruas. Aqui se trata da defesa de liberdades privadas onde o poder público pode intervir na forma de consciência ou estímulo, mas nunca de forma coercitiva. Trata-se da constatação de que há entre nossos homens e mulheres da lei alguns que parecem ainda não saber o significado e o papel do Estado, da Constituição e da sua própria função e papel institucional. Trata-se de constatar nas instituições que fazem o Estado brasileiro a existência não pouco comum de profissionais que confundem convicções pessoais com papéis profissionais, até mesmo em posições de representantes do Estado. Trata-se de constatar que a intromissão da via pública na vida privada nos moldes do contrato social de Rosseau não cabe na acepção contemporânea do Estado Democrático de Direito.

Como vencer esse analfabetismo funcional e incompetência institucional que assola nossa sociedade e compromete a legitimidade do Estado? Certamente não será por meio de cotas. Nenhuma sociedade até hoje avançou por meio de cotas. Por mais bem intencionado que seja o sistema de cotas, no contexto brasileiro ele tem pressupostos que mais ferem que viabilizariam justiça social. No Brasil não se pode lançar mão de argumentos do tipo »mas os Estados Unidos operam sistema de cotas em alguns setores« ou ainda »mas a Alemanha aplica sistema de cotas para incentivar a presença de mulheres em alguns setores da sociedade«.

Perceba-se que a adoção de um sistema de cotas em setores isolados da sociedade em Estados democráticos com instituições consolidadas só se deu após uma série de outras políticas públicas e indicadores compatíveis. A política de cotas só foi adotada em sociedades avançadas de organização complexa após a obtenção de determinados indicadores, não para alcançá-los. Ali a política de cotas não pretendia fazer justiça, apenas melhorar uma distribuição residual. Poderia até se dizer uma forma de justiça, mas a posteriori, secundária a justiça de igual tratamento. Não é o mesmo que ocorre com as reivindicações por sistemas de cotas no Brasil.

Fosse se aplicar um sistema de cotas no Brasil, ele deveria começar na política, incluindo o Congresso e o Senado. Vamos distribuir os cargos e funções em proporções iguais entre brancos, negros, índios, pobres e ricos. Vamos instituir uma representação presidencial rotatória: um mandato será ocupado por um negro; o outro, por um índio; depois, por um branco; depois outro por um pobre; e por último por um rico; alternando, uma vez um homem, outra vez uma mulher. Depois se opera ainda as diversas combinações possíveis. E da mesma forma que no Congresso, também no Senado. Então cada um teria sua vez de dizer a que veio.

Apesar de cômica, não consigo dar outra classificação para essa idéia. Por que será? Será que é porque estamos todos convencidos de que realmente não se faz justiça com igualdade de resultados? Será que ser politicamente correto não seria uma conseqüência de ações coerentes com ideologia não discriminatória, onde todos devem ser tratados de forma digna e igual? Ou será que ser politicamente correto é fazer imediatamente coro de forma não refletida e precipitada com tudo que pretenda negar um fato na humanidade: o preconceito em torno das diferenças.

Para vencer o preconceito em torno das diferenças o que é preciso que se faça? Impor uma igualdade de resultados até mesmo onde o mérito e o merecimento são não só socialmente desejáveis, mas essenciais inclusive ao desempenho social? Se é fato que há diferenças entre os indivíduos, o que significa dispensar tratamentos iguais a despeito das diferenças para satisfazer uma – ainda que legítima – reivindicação social por justiça? É certo que apesar das brincadeiras com as quais se pretendeu tornar a leitura mais agradável para um público mais amplo que o de filósofos e cientistas políticos, o tema justiça e os critérios para se definir justiça e justiça social merecem uma atenção toda especial.

Com certeza não são tão simples como pode ter parecido na descrição dada até aqui. Mas o intuito do texto é apenas instigar o debate público acerca das concepções de justiça, pois se entende que é um debate que se faz urgente no Brasil. Apesar da indubitável boa intenção daqueles que estão lutando pelo sistema de cotas no Brasil – isso é perceptível nos debates públicos, – aqui se discorda do conceito de justiça como igualdade de resultados. No Brasil, parece que essa acepção de justiça não é questionada publicamente. Nem por isso é consenso, no entanto. Essa falta de consenso fica claro nos pronunciamentos contrários ao sistema de cotas, que também cometem a mesma falha de não trazer para o debate público e para a sociedade brasileira, outras acepções de justiça que melhor se compatibilizem com o pensamento do direito político contemporâneo. Que tenha início o debate!

* Leidimar Pereira Murr é Médica, Doutora em Bioética, Professora e articulista.

Por que os Bancos lucram tanto?


Paulo Linhares*

Como questão preliminar é bom enfatizar que não acho que o lucro seja algo pecaminoso, que, a despeito de acreditar nas teses do socialismo de inafastável corte democrático, acredito no papel que a iniciativa privada joga nas sociedades contemporâneas, mormente na dinamização da economia, coisa que o Estado tem dificuldade de fazer, sobretudo porque os barnabés e burocratas padecem de enorme déficit de criatividade.

Aliás, a criatividade deles se esvai na eterna faina de acrescentar ao contracheque qualquer penduricalho que seja, uma gratificaçãozinha raquítica, um adicional não-sei-de-que–lá, enfim, algo que possa “esticar” seus vencimentos, soldos, proventos etc. Aliás, a cultura mais arraigada no serviço público brasileiro, é a da insanável incompetência do Estado como empreendedor.

Claro, tudo isso é mero pano-de-boca, os órgãos públicos podem ser tão competentes e eficientes quanto as instituições privadas, algo já mais do que provado e comprovado através de inúmeros casos de grande sucesso de empreendimentos públicos, de bem sucedidas políticas públicas. O mesmo se diga relativamente aos últimos governos da nação, inclusive o atual, do presidente Lula, cujos méritos tem sido decantados – parcimoniosamente – por nós, neste mesmo espaço domingueiro e até através de outras mídias.

No entanto, algo que nos intriga é o favorecimento excessivo de alguns setores da economia, em alguns casos envolvendo empresas de economia mista, como é o caso da Petrobrás, algumas concessionárias de serviços elétricos e de telecomunicações. Porém, nenhum setor tem merecido mais dengos do Estado brasileiro que os bancos, tanto os da rede pública (agora bem poucos...) quanto aqueles marcadamente privados e que representam os interesses mais refinados do capitalismo selvagem que se pratica, ainda, por estas bandas do mundo.

Os banqueiros, no Brasil, não têm do que reclamar do governo que os proteje com leis brandas, com uma política tributária generosíssima, em que o governo é pai e mãe a um só tempo, isto sem falar na política financeira de compulsórios que pesam pouco para os banqueiros. Compulsório é aquele percentual dos depósitos à vista que o Banco Central recolhe, periodicamente, para evitar o crescimento exagerado e danoso do meio circulante, da moeda.

Tudo isso, aliás, sem falar nos aportes de capital público que têm sido feito para manter a “saúde” do sistema financeiro. No governo FHC foi até criado um programa específico para essa política, o Proer. E o vento levou... milhões e milhões de reais do dinheiro público, enquanto isso milhares de pequenas empresas soçobram diante dos vagalhões de tributos, normas ambientais, entraves burocráticos de todo tipo, obrigações sociais e trabalhistas que desestimulam o emprego etc.

Agora, quando se trata do sistema bancário, a coisa corre solta, sem freio algum, as benesses de que gozam dos poderes públicos, levam os bancos de varejo brasileiros a lucros extraordinários, a ganhos estratosféricos. Bastava que os bancos fossem tributados como é a pessoa física, o assalariado que é um contribuinte cativo do Imposto de Renda de Pessoa Física, pois não tem como escapar do desconto mensal diretamente no seu contracheque, quando é obrigado, manu militari, a abrir mão de quase 40% de sua remuneração, quando feito, também, o desconto previdenciário.

Fiscalizar os contribuintes assalariados de classe média dá menos trabalho e nenhum aborrecimento político; difícil é fiscalizar banqueiro. Aliás, o principal imposto municipal – o Imposto sobre Serviços (ISS) – não é cobrado dos bancos, justo eles que são tipicamente prestadores de serviço. Imagine-se, por exemplo, o município de Mossoró receber 5% da incidência do ISS sobre o valor dos serviços prestados pelos bancos com agências na Cidade? Um bocado de dinheiro que, todavia, fica só na conversa, pois esbarram nos privilégios da banca e nos seus enormes lucros anti-republicanos.

* Paulo Afonso Linhares é Defensor Público-Geral do Estado, Professor e Escritor.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Pearls to PIGS


Por Paulo Linhares*
O ciclo virtuoso criado com a implantação da moeda única - o Euro - parece que se esgotou para alguns países da área da Comunidade Econômica Europeia, mormente aqueles conhecidos pela curiosa sigla PIGS, que é o acrônimo, em inglês, para Portugal, Itália, Grécia e Espanha (atualmente o "i" da sigla não se refere apenas à Itália, mas, também, à Irlanda).

Os analistas econômicos tanto da academia quanto da imprensa foram cruéis quando engendraram essa sigla pela qual passara a conhecer um grupo de países membros da União Européia, pois ela quer dizer "porcos", em inglês.
Nas minhas primeiras viagens à Portugal e à Espanha, a despeito dos tantos monumentos históricos a conhecer, sobretudo aqueles bem evocativos da história do "descobrimento"/colonização do Brasil, admirava-me o atraso desses países se comparados com o nosso, mais especificamente de Portugal, a começar pela tradição de longos governos autoritários, eles com Salazar e Franco, ditadores à moda antiga, exercente de poder unipessoal. Aqui, ao menos a última ditadura que o Brasil teve (de 1964 a 1985), havia uma preocupação do estamento despótico que governava de, ao menos, manter um simulacro de democracia, com o funcionamento dos três poderes do Estado, embora somente o Executivo tivesse peso, além de algumas eleições, a despeito de um longo período o povo ser impedido de votar para presidente, governador de Estado, 1/3 de senadores e prefeitos das capitais dos Estados.

Claro, ditadura é ditadura e não interessa, aqui, nem a mim nem ao benévolo leitor, ficar a discutir se a dita foi branda, mais dura ou meio mole. Tudo finda mesmo em prejuízo para o desenvolvimento das pessoas e das nações. Ditadura é sempre treva e trave. Uma frase do velho ditador António de Oliveira Salazar sobre seu país: "Dêmos à nação optimismo, alegria, coragem, fé nos seus destinos; retemperemos a sua alma forte ao calor dos grandes ideais e tomemos como nosso lema esta certeza inabalável: Portugal pode ser, se nós quisermos, uma grande e próspera nação" (ortografia lusa de então).

Bem, mas Portugal, depois de democratizado, em 1975, com a Revolução dos Cravos (...“Foi bonita a festa pá, fiquei contente. Ainda guardo renitente um velho cravo para mim... ”), iniciava um longo processo de reconstrução institucional e econômico, num afã de superar um atraso de mais de quatro décadas (de 1932 a 1975) de autoritarismo e estagnação política, social e econômica. O atraso de Portugal chegou ao fim quando criada a União Europeia após a assinatura do Tratado de Maastricht, em 7 de Fevereiro de 1992.

Com a UE vieram os maciços inverstimentos e a grande esfinge sob a roupagem reluzente da moeda única da Europa, o Euro. Desde os tempos das colonias (sobretudo da rica colonia sul-americana, o Brasil), que os lusos não viam tanta brasa para suas sardinhas... Uma coisa deu errado: Portugal gastou mais do que a sua (frágil) economia podia suportar (o mesmo ocorreu com Irlanda, Itália, Grécia e Espanha, com variações próprias a cada país) e está a engolfar-se numa profunda e imprevisível crise econômica.

Os portugueses, até há bem pouco tempo a esnobar dos seus manos brasileiros, olham contritos para o vistoso lema da União Europeia: In varietate concordia ("Unidos na diversidade"). E não exergam uma saída para o atoleiro em que se meteram. Os órgãos econômicos (Comissão Europeia e Banco Central Europeu) de UE tangem os PIGS com uma pontiaguda vara de ferrão, a exigir sacrifícios e cortes na própria carne, para debelar a crise cuja característica maior é justamente a da diversidade, porém com um ponto comum: é uma crise monetária de tipo novo, a primeira a ocorrer na Zona do Euro (alguns países da UE não adotaram a moeda comum, a exemplo do Reino Unido), cuja solução ainda não é visível.

Sem mais investimentos salvadores da UE, pois não mais querem botar dinheiro bom em cima de ruim, que é como jogar pérolas aos porcos. Depois de esnobarem seu irmãos brasileiros - que sempre os acudiu - os portugueses começam a cair na real e até já desconfiam que aquele "Portugal pode ser, se nós quisermos, uma grande e próspera nação", do velho tirano Salazar, é ufanismo bobo e nada mais. Alguns até já espicham os olhos para aquela ácida frase do padre Antônio Vieira, tomada como imperdoável perfídia na terras portuguesas: "Chamam de fausto ao fausto porque é infausto; ao mundo de mundo porque é imundo. E a Portugal de Lusitânia, porque nunca luziu nem há de luzir". Pano rápido. Pausa para um cálice de porto, pois...

* Paulo Afonso Linhares é Defensor Público-Geral do Estado, Professor e Escritor.