domingo, 25 de abril de 2010

Considerações sobre Francisco Garcia

Por Marcos Alexandre*

Dizem que o tempo cura a tudo, sobretudo a dor, decepção e tristeza provocadas pela morte de um ente querido. Tomara mesmo que seja assim. Por mais que a razão indique que a morte é a única certeza que temos na vida, ou que "nascemos para morrer", não é tão fácil assimilar a separação definitiva de uma pessoa amada quando essa separação se efetiva. A filosofia e a religião até ajudam a abrandar a dor que castiga a alma em momentos assim. Mas não a cessam por completo.

Como aceitar que, de uma hora para outra, você não terá mais a companhia de alguém que sempre foi tão presente em sua vida? Ah, e não me venham falar em vida eterna! Embora minha fé professe a sua existência, a falta a que me refiro é mesmo a desta vida terrena. E é uma falta enorme. Pior ainda: irreversível. Que vai perdurar até o momento em que chegar a minha vez de pleitear um bom lugar no infinito.

O luto é um dos instantes em que o conflito entre razão e emoção se impõe de forma mais aguda. Por mais que, no fundo, você tenha a exata ciência de que a morte é um fato consumado e absoluto, que não dá margem a nenhum tipo de retorno, às vezes surge a sensação, tão forte quanto, de que o familiar adorado está apenas tomando lugar em alguma viagem. E que logo retornará...

Qualquer que seja o modo de encarar a morte, no fim é a saudade que prevalece. Uma saudade muito forte e também heterogênea. Heterogênea porque é feliz de um lado, aquele em que evoca os muitos momentos de felicidade proporcionados pela (agora) antiga presença do ente que se foi. E heterogênea, de outro lado, porque também gera a constatação de que você não poderá mais abraçar, nem entregar-se ao abraço daquela pessoa que encerrou seu ciclo nesta terra.

Estas breves considerações têm relação direta com a dura experiência por que passo no momento. Meu amado pai, Francisco Garcia de Araújo Filho, faleceu há quase duas semanas, depois de enfrentar um câncer, doença que, uma vez instalada, devasta corpo e alma de suas vítimas - como, de resto, também a vida dos familiares destas.

E quando falo em "enfrentar" não estou usando linguagem figurada. Assim como em outras lutas que precisou empreender, meu pai partiu para sua derradeira batalha com as mesmas armas que sempre sacava e que, de tanto personificá-las, acabaram por se tornar sinônimos de sua vida: serenidade, coragem e dignidade. Cerca de dois anos atrás, logo após sofrermos juntos, ele, seus familiares e amigos, com o impacto do diagnóstico desta perversa doença, envidamos, sob a liderança terna e firme dele, as primeiras providências relativas ao tratamento.

Rapidamente, iríamos descobrir que o combate ao câncer não se limita à doença em si. Tivemos, também, que nos deparar com outros "cânceres", estes instalados não nos organismos, mas em algumas almas humanas. Se é que se pode atribuir almas a pessoas tão frias e indiferentes ante o sofrimento e a necessidades urgentes de um próximo. É muito desalentador constatar que essas pessoas existem e que, em nome da ganância e do cuidado extremo com os próprios umbigo e conta bancária, não fazem nenhum esforço para sequer fingir compaixão, ainda que esse fingimento seja completamente desnecessário.

Felizmente, há também o outro lado dessa história, o lado bom, verdadeiramente humano e que é constituído - hoje, é possível fazer com clareza esse tipo de balanço - da esmagadora maioria das pessoas. Para cada demonstração de desamor diante da angústia alheia, é possível se contabilizar, numa estimativa muito modesta, cinco manifestações verdadeiras de apreço, solidariedade e consideração. Vou pedir desculpas a todas essas pessoas por não nominá-las uma por uma neste espaço. Não o farei exatamente porque elas formam um grupo muito numeroso e porque, em casos assim, sempre podemos cometer o pecado da omissão, o que seria de extrema injustiça neste caso. Prefiro fazer o que venho fazendo junto com minha família: ratificar diretamente a elas nossa gratidão eterna pelos gestos nobilíssimos, porque autênticos e desprendidos, que tiveram para com meu pai.

Não quero aqui apelar para a pieguice, mas faço questão de dizer com todas as letras que exemplos como o do meu pai e dessas pessoas ainda me fazem acreditar na humanidade e nos propósitos para os quais ela foi concebida originalmente, como nos ensina Deus. Mais: esses exemplos nos dão uma vontade tremenda de levá-los adiante. Para disseminá-los e perpetuá-los. É o que eu, particularmente, já procurava fazer. Não porque eu seja especialmente bom ou diferenciado, mas porque foi este o ensinamento que recebi dos meus pais (minha querida mãe também tem muito mérito nisso). A partir de agora, buscarei fortalecer ainda mais esse comportamento.

Como declarei a este mesmo portal Nominuto que me acolhe, em frase reproduzida em matéria escrita com muita sensibilidade pela talentosa repórter Melina França, o homem Francisco Garcia era um exemplar como é raro se achar hoje em dia.

Num mundo tão carente de valores éticos, morais e amorosos, ele os esbanjava. Tinha-os aos montes. E o mais importante é que fazia questão de dividir e transmitir esses valores a todos os que o cercavam. Não havia, aí, nenhuma pretensão de manipular corações e mentes, nem tampouco nenhuma vocação messiânica. O intuito, singelo e ao mesmo tempo grandioso, era, sempre, o de contribuir, de ajudar. Não foram poucas as vezes em que, solicitado, conseguiu com uma boa conversa levar à reflexão e abrir novos horizontes para os que buscavam seu auxílio.

Quem o conheceu, pode comprovar que minhas palavras sobre ele não têm nada de exagero. Quem não o conheceu, perdeu a oportunidade de desfrutar de uma das melhores companhias que se pode ter. Isto em termos de bondade, companheirismo, compreensão e de vontade genuína de ajudar o próximo, mesmo que isso significasse abrir mão do bem-estar próprio.

Aos leitores, peço licença por trazer a este espaço um assunto aparentemente restrito ao âmbito pessoal. Na verdade, considero que estas observações têm uma função que ultrapassa o caráter de tributo à memória do meu pai. Elas embutem, na minha visão, a importância que têm todas as mensagens que visem a exaltar as boas referências de que o mundo hoje tanto precisa e que eram um exercício constante na vida de Francisco Garcia.

Encerro este texto voltando a falar do tempo e do seu pretenso poder de cicatrizar as feridas da alma. Reitero minha torcida para que esse poder seja real e que possamos, eu e minha família, conviver melhor com o fato de que não teremos mais nosso Francisco Garcia nesta vida. Por ora, o tempo só me dá uma certeza: a de que ele nunca vai sequer diminuir o grande amor que sinto pelo meu pai.

* Marcos Alexandre é jornalista e comentarista político, mantenedor do Blog Palanque (www.nominuto.com/blog/palanque-com).

sábado, 17 de abril de 2010

Os três eixos da democracia: consolidação institucional, transparência do poder e coerência das ações políticas.


Por Leidimar Murr*


Como se mede o grau de consolidação democrática de um país? Certamente de várias maneiras, mas uma delas é dada em forma de lição explícita pelo Brasil no momento. Perceba-se que as instituições do Estado Democrático de Direito – na verdade pensadas entre outros para evitar abusos e o uso desmedido da violência do Estado contra o indivíduo, este sem possibilidade de defesa em grau compatível – passam a ser desvirtuadas para servir a interesses escusos de poderes alheios ao Estado.

É assim que, tome-se como exemplo o Caso Arruda, em uma seqüência de decisões e medidas travestidas de “decisões institucionais” se assiste ser consumido um montante cada vez maior de recursos financeiros e humanos do povo brasileiro, sem que efetivamente o grave problema da corrupção seja de fato enfrentado.

Entende-se que um país democrático com instituições amplamente consolidadas já teria colocado um basta nas pretensões do Réu em ganhar tempo e permanecer orbitando o poder. Ou seja, além dos recursos que escorreram pelo ralo em função de suas atitudes muito mais do que apenas duvidosas no uso do dinheiro público, ainda tem-se que presenciar os gastos que continua a trazer aos cofres da Nação, em um sem número de atitudes desrespeitosas. Dignidade, se não a teve o homem antes do delito, precisa tê-la para não deixar esperar até o último recurso antes de admitir o erro.

Se as instâncias, os julgamentos e as possibilidades de recorrer do acusado se prestam para impedir que este seja esmagadoramente injustiçado pelo Estado, não significam, no entanto permitir ao acusado utilizar-se dos instrumentos democráticos para esmagar violentamente qualquer significado que se possa dar ao ordenamento jurídico do país. País que sofregamente se esforça para, tendo vislumbrado o solo democrático, continuar, ainda que a nado, o trajeto para aportar em terra democrática firme.

Nesse sentido é desalentadora a constatação que, apesar da opção pela via democrática coroada com a Constituição de 1988, o Brasil continua a dar mostras de atraso institucional e, portanto, constitucional e democrático.

É preciso que seja semeada a consciência de que no Brasil o tema não é mais a queixa de que fomos saqueados por navegadores portugueses e retirados da utopia paradisíaca que nos confundiria com a própria natureza. Também não é mais nosso tema o avesso do discurso do colonizado, que dizia pretender nos tornar independentes do colonizador. Tampouco é nosso tema procurar identificação com o colonizador para buscar as forma de reparo a injustiças do passado. Nosso tema, enquanto Nação Soberana não é mais o de explorador e explorado, mocinho e bandido, polícia e ladrão – mesmo que estes sejam temas da agenda política interna do país. Nosso tema no Brasil não pode mais ser resumido à dicotomia entre o bem e o mal. Ademais, já tivemos demonstrações suficientes de que o explorador, o bandido e o ladrão estão aqui, bem pertinho de nós, convivendo conosco, pago por nós.

O nosso tema não é mais nos libertarmos do outro a quem culpamos pelas nossas mazelas. Ou seja, já não nos cabe o velho discurso com palavras novas que por vezes retorna sob a insígnia de “centro” dominador da “periferia”. No contexto atual é a própria “periferia” que faz questão de manter vivo no imaginário da sociedade esse “centro” para desviar o furor que caso contrário (caso se desfaça o mito Centro-Periferia) se voltaria contra ela (a própria periferia).

Já não há diferença entre o maldito ou o protetor e benéfico. O mito de Édipo, a vítima impotente diante do Destino, se perpetua no Brasil emergente. Destino que adota por vezes a forma de Natureza, outras vezes de candidatos Benfeitores, outras vezes de menores Criminosos ou de Sociopatas convictos. E a sociedade brasileira para compreender a sucessão de catástrofes que assolam cidades mal planejadas e cravejadas de ações políticas incoerentes parece ter optado por encarnar o Édipo. Mas no fim do Terceiro Ato tudo se esclarecerá. A platéia vai perceber que Centro e Periferia são um só; toda encenação, por menos pressa que tenha, tem um fim. A chuva demonstra ter o poder de levar as máscaras embora e de lavar todos os resíduos de maquiagem. Curioso permanece apenas o fato de que as etimologias fantasiosas que já povoaram a mente dos antigos na tentativa de decifrar fenômenos e eventos, naturais e políticos, ainda pairam no ar do Brasil contemporâneo.

No Brasil de hoje, o nosso tema enquanto Nação é cuidar para que não mais nos esquivemos de assumir o leme do nosso Destino, onde nós somos os responsáveis pelo mundo e pelo Estado do qual já fizemos um primeiro esboço, mesmo que ainda estejamos temerosos quanto ao desenho final.

É por isso que se nos perguntamos como se mede o grau de consolidação democrática de um país, cabe como possível resposta: da mesma forma que se mediria o grau de maturidade de um indivíduo; pela capacidade de tomar decisões, de arcar com as conseqüências de suas escolhas e, sobretudo, de buscar manter a coerência entre “o que se é” e “o que se quer ser”. Para que haja essa coerência é preciso que todas as decisões estejam subjugadas a essa fórmula, não sendo permitido que, contrariamente, se crie, a cada situação, novas fórmulas para atender a decisões particulares como vem sendo feito no Brasil em geral, e muito caracteristicamente no imbróglio em que se encontra a gestão do Distrito Federal.

A fórmula para os casos envolvendo peculato e suborno deveria ser: o mínimo de custos adicionais ao já provocado tão só pela sua ocorrência. Isso significa o mínimo de tempo e de mobilização de recursos públicos para se garantir os trâmites constitucionalmente estabelecidos, adidos à limitação das possibilidades de se impetrarem recursos ao mínimo necessário para garantir a defesa do Réu sem, no entanto arriscar incorrer em excessos além dos excessos que o próprio caso já representa. É certo que os crimes cometidos serão como de praxe checados; não se justificando, portanto aqui o temor de que o Réu poderia vir a ser injustiçado. Para os trâmites do processo o Judiciário dispõe dos instrumentos, sem que tais casos precisem continuar a aborrecer ainda mais o cidadão; seja com problemas médicos do Réu – assunto inclusive para ser tratado exclusivamente com seu médico nos limites que a lei venha a regulamentar, – seja com a divulgação pública de fórmulas mirabolantes que só põem ainda mais em questionamento a consolidação democrático-institucional do Brasil.

Não é  aquele Destino das tragédias gregas que se abate sobre nós. Também não é por acaso que enquanto o Caso Arruda arrola na Justiça, a sociedade é exposta a criminosos equivocadamente libertados do regime prisional, como também não é por acaso que casas irregulares desabam e outras tantas, formalmente regulares apesar de tecnicamente condenáveis, são edificadas. Consolidação institucional, transparência do poder e coerência nas ações políticas caminham juntas: constituem os três eixos da democracia do mundo contemporâneo. São elas que medem o grau de consolidação democrática de um país.

* Leidimar Pereira Murr é médica, Doutra em Bioética e Professora.