sábado, 17 de abril de 2010

Os três eixos da democracia: consolidação institucional, transparência do poder e coerência das ações políticas.


Por Leidimar Murr*


Como se mede o grau de consolidação democrática de um país? Certamente de várias maneiras, mas uma delas é dada em forma de lição explícita pelo Brasil no momento. Perceba-se que as instituições do Estado Democrático de Direito – na verdade pensadas entre outros para evitar abusos e o uso desmedido da violência do Estado contra o indivíduo, este sem possibilidade de defesa em grau compatível – passam a ser desvirtuadas para servir a interesses escusos de poderes alheios ao Estado.

É assim que, tome-se como exemplo o Caso Arruda, em uma seqüência de decisões e medidas travestidas de “decisões institucionais” se assiste ser consumido um montante cada vez maior de recursos financeiros e humanos do povo brasileiro, sem que efetivamente o grave problema da corrupção seja de fato enfrentado.

Entende-se que um país democrático com instituições amplamente consolidadas já teria colocado um basta nas pretensões do Réu em ganhar tempo e permanecer orbitando o poder. Ou seja, além dos recursos que escorreram pelo ralo em função de suas atitudes muito mais do que apenas duvidosas no uso do dinheiro público, ainda tem-se que presenciar os gastos que continua a trazer aos cofres da Nação, em um sem número de atitudes desrespeitosas. Dignidade, se não a teve o homem antes do delito, precisa tê-la para não deixar esperar até o último recurso antes de admitir o erro.

Se as instâncias, os julgamentos e as possibilidades de recorrer do acusado se prestam para impedir que este seja esmagadoramente injustiçado pelo Estado, não significam, no entanto permitir ao acusado utilizar-se dos instrumentos democráticos para esmagar violentamente qualquer significado que se possa dar ao ordenamento jurídico do país. País que sofregamente se esforça para, tendo vislumbrado o solo democrático, continuar, ainda que a nado, o trajeto para aportar em terra democrática firme.

Nesse sentido é desalentadora a constatação que, apesar da opção pela via democrática coroada com a Constituição de 1988, o Brasil continua a dar mostras de atraso institucional e, portanto, constitucional e democrático.

É preciso que seja semeada a consciência de que no Brasil o tema não é mais a queixa de que fomos saqueados por navegadores portugueses e retirados da utopia paradisíaca que nos confundiria com a própria natureza. Também não é mais nosso tema o avesso do discurso do colonizado, que dizia pretender nos tornar independentes do colonizador. Tampouco é nosso tema procurar identificação com o colonizador para buscar as forma de reparo a injustiças do passado. Nosso tema, enquanto Nação Soberana não é mais o de explorador e explorado, mocinho e bandido, polícia e ladrão – mesmo que estes sejam temas da agenda política interna do país. Nosso tema no Brasil não pode mais ser resumido à dicotomia entre o bem e o mal. Ademais, já tivemos demonstrações suficientes de que o explorador, o bandido e o ladrão estão aqui, bem pertinho de nós, convivendo conosco, pago por nós.

O nosso tema não é mais nos libertarmos do outro a quem culpamos pelas nossas mazelas. Ou seja, já não nos cabe o velho discurso com palavras novas que por vezes retorna sob a insígnia de “centro” dominador da “periferia”. No contexto atual é a própria “periferia” que faz questão de manter vivo no imaginário da sociedade esse “centro” para desviar o furor que caso contrário (caso se desfaça o mito Centro-Periferia) se voltaria contra ela (a própria periferia).

Já não há diferença entre o maldito ou o protetor e benéfico. O mito de Édipo, a vítima impotente diante do Destino, se perpetua no Brasil emergente. Destino que adota por vezes a forma de Natureza, outras vezes de candidatos Benfeitores, outras vezes de menores Criminosos ou de Sociopatas convictos. E a sociedade brasileira para compreender a sucessão de catástrofes que assolam cidades mal planejadas e cravejadas de ações políticas incoerentes parece ter optado por encarnar o Édipo. Mas no fim do Terceiro Ato tudo se esclarecerá. A platéia vai perceber que Centro e Periferia são um só; toda encenação, por menos pressa que tenha, tem um fim. A chuva demonstra ter o poder de levar as máscaras embora e de lavar todos os resíduos de maquiagem. Curioso permanece apenas o fato de que as etimologias fantasiosas que já povoaram a mente dos antigos na tentativa de decifrar fenômenos e eventos, naturais e políticos, ainda pairam no ar do Brasil contemporâneo.

No Brasil de hoje, o nosso tema enquanto Nação é cuidar para que não mais nos esquivemos de assumir o leme do nosso Destino, onde nós somos os responsáveis pelo mundo e pelo Estado do qual já fizemos um primeiro esboço, mesmo que ainda estejamos temerosos quanto ao desenho final.

É por isso que se nos perguntamos como se mede o grau de consolidação democrática de um país, cabe como possível resposta: da mesma forma que se mediria o grau de maturidade de um indivíduo; pela capacidade de tomar decisões, de arcar com as conseqüências de suas escolhas e, sobretudo, de buscar manter a coerência entre “o que se é” e “o que se quer ser”. Para que haja essa coerência é preciso que todas as decisões estejam subjugadas a essa fórmula, não sendo permitido que, contrariamente, se crie, a cada situação, novas fórmulas para atender a decisões particulares como vem sendo feito no Brasil em geral, e muito caracteristicamente no imbróglio em que se encontra a gestão do Distrito Federal.

A fórmula para os casos envolvendo peculato e suborno deveria ser: o mínimo de custos adicionais ao já provocado tão só pela sua ocorrência. Isso significa o mínimo de tempo e de mobilização de recursos públicos para se garantir os trâmites constitucionalmente estabelecidos, adidos à limitação das possibilidades de se impetrarem recursos ao mínimo necessário para garantir a defesa do Réu sem, no entanto arriscar incorrer em excessos além dos excessos que o próprio caso já representa. É certo que os crimes cometidos serão como de praxe checados; não se justificando, portanto aqui o temor de que o Réu poderia vir a ser injustiçado. Para os trâmites do processo o Judiciário dispõe dos instrumentos, sem que tais casos precisem continuar a aborrecer ainda mais o cidadão; seja com problemas médicos do Réu – assunto inclusive para ser tratado exclusivamente com seu médico nos limites que a lei venha a regulamentar, – seja com a divulgação pública de fórmulas mirabolantes que só põem ainda mais em questionamento a consolidação democrático-institucional do Brasil.

Não é  aquele Destino das tragédias gregas que se abate sobre nós. Também não é por acaso que enquanto o Caso Arruda arrola na Justiça, a sociedade é exposta a criminosos equivocadamente libertados do regime prisional, como também não é por acaso que casas irregulares desabam e outras tantas, formalmente regulares apesar de tecnicamente condenáveis, são edificadas. Consolidação institucional, transparência do poder e coerência nas ações políticas caminham juntas: constituem os três eixos da democracia do mundo contemporâneo. São elas que medem o grau de consolidação democrática de um país.

* Leidimar Pereira Murr é médica, Doutra em Bioética e Professora.

2 comentários:

  1. Dignidade, se não a teve o homem antes do delito, precisa tê-la para não deixar esperar até o último recurso antes de admitir o erro

    ResponderExcluir
  2. "Eu só quero é ser feliz/Andar tranquilamente na favela onde eu nasci/E poder me orgulhar/E ter a consciencia que o pobre tem seu lugar/Fé em Deus!"
    Esse é o trecho de uma música intitulada RAP DA FELICIDADE, da dupla Cidinho e Doca. Esse rap tocou sucessivamente(e insuportavelmente)durante meses no Brasil em 2002, e a Globo eternizou como tema da série CIDADE DOS HOMENS. O Brasil inteiro se emocionava com os dilemas vividos por Laranjinha e Acerola, os dois personagens principais. Eles viviam acossados e atormentados o tempo inteiro pelos problemas específicos das comunidades dos morros. Atormentados e felizes. E por falar em felicidade...uma pesquisa aponta o brasileiro como o povo mais feliz do mundo, principalmente o carioca, o povo mais alegre e irradiante. A pesquisa é da Getúlio Vargas, em 132 países, e da Forbes.
    O relaxamento moral e jurídico permite essas aberrações urbanas e silencia diante do vício da corrupção. Quanto as autoridades...eles vão empurrando com a barriga para a próxima barriga. E o povo? O povo quer festa, mesmo que a ressaca de Baco recaia sobre eles.

    ResponderExcluir