domingo, 9 de maio de 2010

O menino limpador de vidros

Por Kennedy Diógenes*


Disputam o nosso espírito, a aspereza do cotidiano e a doçura dos sentimentos, o que nos faz incrementar uma visão, algumas vezes torpe, outras vezes, lúcida, dessa admirável saga humana.

Nessa “vida louca vida, vida breve”, como sintetiza a música de Cazuza, torvelinhos de fatos e obrigações urgentes, muitos desses baseados nos caprichos consumistas e necessidade de autopreservação da sociedade moderna, encobriram a nossa capacidade de discernimento, de distinguir a “impostura da verdade”, calejando nossa alma como calejada é a mão de um trabalhador braçal.

Sabemos que parte desse nosso encouraçamento espiritual se deve a uma série de tragédias corriqueiras como as guerras declaradas e não declaradas, a banalização da vida, aos mega-esquemas de corrupção, a proliferação do tráfico e à ineficiência estatal em vários setores, entre outras desgraças que ganham cor e forma nos noticiários diários, deixando-nos em um estado de dormência coletiva, uma improvável resignação à dor e ao sofrimento alheio.   

No entanto, como se pertencesse a própria programação da vida, de tempos em tempos, fatos inusitados atravessam o nosso caminho como se uma espécie de raio caísse em nossas cabeças, propiciando-nos a rara interrupção desse ritmo frenético, e, por instantes, tudo fica claro.

“É que eu estou com fome”, respondeu um menino de uns 12 anos, em precoce função de limpador de vidros num dos sinais de Natal, quando perguntamos o que fazia ali às 2:00 da madrugada.

Esse foi um dos raios que atingiram nossas cabeças, não somente pelas palavras daquele adolescente, mas pela sua expressão de dor que o fazia franzir a testa; pela angústia que saltava dos olhos; pelo corpo franzino encolhido no canteiro da rua. Tudo nele gritava, implorava, mas ninguém ouvia, enquanto os carros passavam indiferentes, parando bem antes dele, talvez pelo medo de assalto ou porque não queriam ser importunados, acordados de suas vidinhas perfeitas.

O menino limpador de vidros, que se referia à fome do corpo, era a imagem do abandono, do descaso, da indiferença. Sua fome, além do estômago, estende-se às suas inúmeras necessidades materiais, pois lhe faltam educação, moradia, saúde e segurança, a fim de que pudesse ter oportunidade de uma vida digna.

E o Poder Público, onde está? Sabemos que seus agentes saem à noite através das fotos publicadas nas colunas sociais. Será que não conseguem ver várias crianças, em plena madrugada, ao longo das principais avenidas de Natal? Será que ocupavam os carros que paravam distantes dos sinais para evitar a visão de meninos com a mão estendida?

Este Poder, que tudo pode, inclusive ignorar a dor de quem devia proteger, ao omitir-se, rouba o futuro dessas crianças e adolescentes; furta-lhes o direito de viver decentemente; de sonhar e materializar esses sonhos.

Esse menino limpador de vidros também nos fez questionar aonde estávamos quando o primeiro apareceu? Ao cuidarmos dos nossos interesses mesquinhos, permitimos, toleramos, “compreendemos” a inércia, indolência e incompetência administrativa do Estado, que não consegue resolver os problemas sociais, que não consegue atender decentemente os seus cidadãos, apesar da sua sanha de arrecadação de tributos cada vez maior.

Também temos o nosso “mea culpa”. Somos cúmplices do Poder Público, pois, ao fingirmos acreditar e apoiar os discursos oportunistas, populistas, cheios de falsas promessas desses políticos que ocupam cargos públicos há décadas e nada produzem, nada fazemos e, se pudermos, ainda colhemos migalhas das benesses que são distribuídas aos “amigos do Rei”.

Assim, ficou claro que também colocamos todos aqueles meninos nos canteiros do mundo, à margem de uma vida digna, e percebemos que, em algum momento, perdemo-nos nos caminhos que trilhamos, o que nos faz lembrar de Fernando Pessoa, um dos maiores luminares da poesia portuguesa, quando escreveu “A criança que fui chora na estrada / Deixei-a ali quando vim ser quem sou / Mas hoje, vendo que o que sou é nada, / Quero ir buscar quem fui onde ficou”.

E essa compreensão é dolorosa, machuca, mas necessária, pois, como pregava Chico Xavier, “embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode recomeçar e fazer um novo fim”.



* Kennedy Diógenes é advogado.


6 comentários:

  1. Mas, e ai, voce que e funcionario publico, descolou alguma coisa pra matar a fome do rapaz.

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  2. Transitoriamente, pode-se alimentar o corpo, mas não se vivifica a alma. Kennedy Diógenes

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  3. Edna Maria Azevedo9 de maio de 2010 às 19:44

    Não ando muito feliz comigo ultimamente,pois não tenho feita muita coisa para tentar modificar essas situações, perdemos as lutas que se iniciava nos grêmios estudantis. A mentira faz parte do novo código de leis não escrita é uma regra não exceção. Nos tornamos pessoas agressivas, competitivas e individualistas, nos deixamos explorar como cidadãos,mas não nos tornamos interessante como pessoas. Existe um acordo velado em que
    fingimos querer modificar e por outro lado os políticos fingem ter uma nova atitude.

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  4. Amigo, poeta e escritor sensível, nesse texto eu revisito seus sentimentos e a sua preocupação com o próximo... Mas eu lanço uma pergunta mais simples, onde estava a mãe ou o pai desse garoto, que deveria estar em sua casa dormindo e no outro dia ir para escola, fazendo parte do programa nacional de incentivo a educação? Como os pais desse menino estão utilizando o dinheiro da bolsa escola? Enfim, a fome do menino pode ser a fome da falsa liberdade, o desvirtuamento no mundo das drogas e de outras dependências químicas ou emocionais, não resolvidas com a falta de um programa de consciência no planejamento familiar. Muitos querem filhos e não os tem, outros tem muitos filhos e não os querem...enfim, de todo modo acho que o Poder Público e a Sociedade Civil são solidariamente responsáveis por essas antinomias. Continuo reflexiva com o texto.
    Luciana Costa - Advogada

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  5. Parabéns, amigo. Bem escrito. Hallrison.

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  6. Não sabia que daquele momento tinha feito esse artigo, mas lhe digo meu caro que o poder
    público está nesse momento circulando em nossa
    cidade com película nº8 em suas Hilux ou seus
    Land Rover.

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