Paulo Afonso Linhares*
Seguindo a tradição de ser uma "república dos bacharéis", o Brasil mantém teima na crença absoluta de que a realidade pode ser moldada por leis escritas, como se fosse possível, numa penosa inversão, a superestrutura influenciar ou mesmo determinar a estrutura da sociedade, para usar as categorias tão bem trabalhadas pelo filósofo Antonio Gramsci. Os exemplos recentes não foram suficientes - sobretudo o do processo que originou a vigente Constituição - para mudar essa obsessão legiferante.
Com efeito, no processo constitucional de 1988, a sociedade brasileira, mal saída de uma ditadura que durou mais de duas décadas, foi com enorme sede ao pote da Constituinte: grupos de pressão de todos os matizes queriam influir na feitura da nova Carta para nela colocar, seja de que modo fosse, dispositivos que representassem os seus interesses concretos. E muitas matérias que não se adequavam ao figurino constitucional terminaram por entrar no texto final da Constituição de 1988. Aí, o inevitável ocorreu: a grande maioria dessas disposições serviu apenas como ornamento, ou por serem inexequíveis ou para cumprir uma tradição bem "nacional" de que as leis são feitas para não serem cumpridas, algo assim como a corruptela do famosa brocardo latino Dura Lex sed Lex - a lei é dura mais é lei - para Dura lex sed latex que, numa tradução das ruas, seria "a lei é dura mas estica"...
Sim, poucas tradições jurídicas no Brasil são tão bem assentadas quanto essa de se esticar a lei para promover a impunidade e os privilégios de verdadeiras castas incrustadas nos aparelhos do Estado, ou nos órgãos da sociedade civil, que são as decantadas "elites" dominantes. Quando não é possível mais dobrar ou esticar a lei, simplesmente entra na arena o casuísmo de se substituir a lei velha por outra que atenda a interesses privados ou consubstanciem privilégios anti-republicanos.
A nova teima é a chamada "lei da ficha limpa". Os últimos anos têm sido marcados, no Brasil, por constantes ondas de descrédito que atingem a maioria das instituições jurídico-políticas nacionais, em especial as de cunho parlamentar, a começar pelo próprio Congresso Nacional. Óbvio que os cidadãos brasileiros, dispondo de um nível de informações cada vez maior, sobretudo em razão do grande crescimento do número de usuário da Internet, têm repudiado com insuspeito vigor o déficit ético, apontando exigências politicamente sofisticadas, como é o caso da ficha limpa, ou seja, um dos requisitos da elegibilidade é o fato do aspirante às candidaturas ser alguém de vida escorreita, livre de qualquer complicação com a Justiça ou mesmo com a polícia.
Pensam os autores da proposta - uma iniciativa popular de projeto de lei com mais de 1,3 milhões de subscritores - que isso vai separar o joio do trigo na política brasileira, impedindo as candidaturas de políticos condenados por crimes graves, desde que haja uma condenação criminal por improbidade administrativa para que ocorra a inelegibilidade.
O projeto apresentado no Congresso foi aprovado com modificações nas duas Casas, estando no aguardo da sanção presidencial que, ao que parece, já é certa. Os critérios de inelegibilidade, derivados da conduta criminosa do candidato, mais consentâneos com a realidade, ainda são os da velha Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de noventa, com as alterações da Lei Complementar nº 81, de 13/04/1994: sentença penal condenatória transitada em julgado e referente a certas espécies de crimes (crimes contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de 3 (três) anos, após o cumprimento da pena).
A Lei da Ficha Limpa, ao contrário, proíbe a candidatura de todo aquele que tiver sido condenado em primeira instância por um colegiado de juízes, mesmo que não haja, ainda, uma certeza jurídica que somente se cristaliza como o trânsito em julgado. Muita polêmica vai rolar nos tribunais brasileiro com esse novo modismo de duvidosa constitucionalidade. Aguardemos.
* Paulo Afonso Linhares é Doutor pela Universidade de Pernambuco, Defensor Público Geral do Estado, professor e escritor.
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