domingo, 7 de março de 2010

Concepção de Justiça e Sistema de Cotas.


Por Leidimar Murr*

O que significa a crescente onda de reivindicações no Brasil por justiça social? Por que as reivindicações por sistemas de cotas, no lugar de contar com amplo consenso social e político tem causado mais polêmica que sossego? Porque no Brasil o conceito de justiça está equivocadamente atrelado ao ultrapassado conceito de justiça por igualdade de resultados. Ultrapassado não na forma dos modismos que freqüentemente tomam conta da sociedade brasileira. Ultrapassado por ter sido abandonado pelas democracias contemporâneas com base nas duras experiências que a história deixa como legado.

Os homens não são iguais. Justiça não é querer igualá-los à força. Justiça não está nos fins e sim nos meios. Justiça não está em impor uma igualdade impossível, mas, sim, em dispensar tratamentos iguais. Ou seja, todos devem ser tratados iguais, »inclusive perante a lei«, a despeito das desejáveis e maravilhosas diferenças individuais.

Tratamento digno e igual não é compatível com igualdade de resultados. O papel do Estado não é impor, por meios legalistas, igualdade de fins, mas sim providenciar por mecanismos legítimos de políticas públicas para que aquele cujas diferenças tenham levado a uma situação de desigualdade associada à desvantagem social possa usufruir de uma vida humanamente, socialmente e politicamente digna. Apesar de não se pretender com o presente texto encontrar respostas para todas as questões aqui levantadas, entende-se que são questões que merecem chegar à sociedade brasileira. Não pode ser tabu se questionar a concepção de justiça que o Brasil vem adotando. Esse é o momento. Se não é pretensão aqui encontrar as respostas para as perguntas lançadas, o é inaugurar esse momento.

No Brasil, eu me arrisco a afirmar, só há uma forma de efetivamente se fazer a tão esperada justiça social. Certamente não será por meio de leis e cotas, mas por mecanismos que visem à consolidação das instituições que compõem o Estado Democrático de Direito. Para consolidá-las é preciso que lhes favoreça o cumprimento de papel institucional. Que se busque a competência na realização de suas funções e a observância de que cumpram estas funções. Urge o questionamento das instituições e seu papel, reivindicação consensualmente e constitucionalmente expressa pelos Estados Democráticos de Direito, dentre os quais o Brasil. É do Estado administrativo de que carece o Brasil.

Esse lançar propostas de cotas para todos os lados desvia o foco do aspecto mais urgente e central às democracias contemporâneas de economias emergentes, que é a consolidação institucional. Passa-se a questionar as inferências das decisões políticas (no sentido amplo da palavra) sobre essas instituições, instituições que sequer apreenderam ou aprenderam seus papéis. Basta que se tomem como exemplo os casos recentes de promotores que em atitude abusiva prende mães de alunos que faltaram a aulas, ou mantém sob ameaça, adolescentes, impedindo-os de transitar às ruas determinados horários.

Pergunta-se: há crianças de Rua no Brasil ou pelo menos nessas cidades onde se tomou atitude tão ousada? Se houver, cabe a todo pai e mãe que tem que manter seu filho impedido de sair em determinado horário processar também o Estado. Pergunta-se: as escolas onde estudam as crianças que faltaram e tiveram suas mães privadas de liberdade em delegacias dispõem de quantos mestres competentes para o ensino? As crianças estão em segurança? Entenda-se que aqui não se trata de apologia a falta à escola ou à defesa de crianças tarde da noite perambulando pelas ruas. Aqui se trata da defesa de liberdades privadas onde o poder público pode intervir na forma de consciência ou estímulo, mas nunca de forma coercitiva. Trata-se da constatação de que há entre nossos homens e mulheres da lei alguns que parecem ainda não saber o significado e o papel do Estado, da Constituição e da sua própria função e papel institucional. Trata-se de constatar nas instituições que fazem o Estado brasileiro a existência não pouco comum de profissionais que confundem convicções pessoais com papéis profissionais, até mesmo em posições de representantes do Estado. Trata-se de constatar que a intromissão da via pública na vida privada nos moldes do contrato social de Rosseau não cabe na acepção contemporânea do Estado Democrático de Direito.

Como vencer esse analfabetismo funcional e incompetência institucional que assola nossa sociedade e compromete a legitimidade do Estado? Certamente não será por meio de cotas. Nenhuma sociedade até hoje avançou por meio de cotas. Por mais bem intencionado que seja o sistema de cotas, no contexto brasileiro ele tem pressupostos que mais ferem que viabilizariam justiça social. No Brasil não se pode lançar mão de argumentos do tipo »mas os Estados Unidos operam sistema de cotas em alguns setores« ou ainda »mas a Alemanha aplica sistema de cotas para incentivar a presença de mulheres em alguns setores da sociedade«.

Perceba-se que a adoção de um sistema de cotas em setores isolados da sociedade em Estados democráticos com instituições consolidadas só se deu após uma série de outras políticas públicas e indicadores compatíveis. A política de cotas só foi adotada em sociedades avançadas de organização complexa após a obtenção de determinados indicadores, não para alcançá-los. Ali a política de cotas não pretendia fazer justiça, apenas melhorar uma distribuição residual. Poderia até se dizer uma forma de justiça, mas a posteriori, secundária a justiça de igual tratamento. Não é o mesmo que ocorre com as reivindicações por sistemas de cotas no Brasil.

Fosse se aplicar um sistema de cotas no Brasil, ele deveria começar na política, incluindo o Congresso e o Senado. Vamos distribuir os cargos e funções em proporções iguais entre brancos, negros, índios, pobres e ricos. Vamos instituir uma representação presidencial rotatória: um mandato será ocupado por um negro; o outro, por um índio; depois, por um branco; depois outro por um pobre; e por último por um rico; alternando, uma vez um homem, outra vez uma mulher. Depois se opera ainda as diversas combinações possíveis. E da mesma forma que no Congresso, também no Senado. Então cada um teria sua vez de dizer a que veio.

Apesar de cômica, não consigo dar outra classificação para essa idéia. Por que será? Será que é porque estamos todos convencidos de que realmente não se faz justiça com igualdade de resultados? Será que ser politicamente correto não seria uma conseqüência de ações coerentes com ideologia não discriminatória, onde todos devem ser tratados de forma digna e igual? Ou será que ser politicamente correto é fazer imediatamente coro de forma não refletida e precipitada com tudo que pretenda negar um fato na humanidade: o preconceito em torno das diferenças.

Para vencer o preconceito em torno das diferenças o que é preciso que se faça? Impor uma igualdade de resultados até mesmo onde o mérito e o merecimento são não só socialmente desejáveis, mas essenciais inclusive ao desempenho social? Se é fato que há diferenças entre os indivíduos, o que significa dispensar tratamentos iguais a despeito das diferenças para satisfazer uma – ainda que legítima – reivindicação social por justiça? É certo que apesar das brincadeiras com as quais se pretendeu tornar a leitura mais agradável para um público mais amplo que o de filósofos e cientistas políticos, o tema justiça e os critérios para se definir justiça e justiça social merecem uma atenção toda especial.

Com certeza não são tão simples como pode ter parecido na descrição dada até aqui. Mas o intuito do texto é apenas instigar o debate público acerca das concepções de justiça, pois se entende que é um debate que se faz urgente no Brasil. Apesar da indubitável boa intenção daqueles que estão lutando pelo sistema de cotas no Brasil – isso é perceptível nos debates públicos, – aqui se discorda do conceito de justiça como igualdade de resultados. No Brasil, parece que essa acepção de justiça não é questionada publicamente. Nem por isso é consenso, no entanto. Essa falta de consenso fica claro nos pronunciamentos contrários ao sistema de cotas, que também cometem a mesma falha de não trazer para o debate público e para a sociedade brasileira, outras acepções de justiça que melhor se compatibilizem com o pensamento do direito político contemporâneo. Que tenha início o debate!

* Leidimar Pereira Murr é Médica, Doutora em Bioética, Professora e articulista.

3 comentários:

  1. Mais uma vez, não consigo deixar de comentar um texto da Professora Leidimar. Seus temas oferecem um inevitável convite à reflexão. Sua abordagem isenta não conseguimos encontrar facilmente nos articulistas mediáticos. Para quem é, rotineiramente, agredido pelas palavras mal-intencionadas de um Arnaldo Jabor, de um Boris Casoy, de um Willian Waack, ler os textos da Professora é um alívio para o espírito.
    Recentemente, suspendi minha assinatura do Jornal de Hoje, reagindo à extrema parcialidade de alguns articulistas locais, como Alex Medeiros, Daniela Freire, Túlio Lemos, e outros agentes partidários que ali despejam suas palavras, insinuadas como verdades.
    Bem, voltando ao artigo em questão, lembro que, no cerne de toda a discussão sobre cotas, reside ainda uma expectativa tenebrosa, paralela, e tão importante: enveredar ou não pelos perigosos caminhos do racismo (no caso das cotas raciais).
    Cotas que desejam corrigir distorções não podem, nem devem criá-las.
    Por outro lado, não creio que a simples afirmação institucional venha corrigir todas as mazelas e distorções de nossa sociedade.
    Entendo a aplicação de cotas como uma alternativa para correção dos efeitos – não das causas – gerados por desigualdades de poder econômico, acarretando reflexos sociais positivos.
    Dessa forma, baseada apenas no aferível poder econômico do cidadão, sim, poder-se-á adotar a bem intencionada medida, equalizando as possibilidades de acesso aos serviços financiados pelo Estado.

    Aluísio Azevedo Júnior, escritor.

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  2. No Brasil, todos se igualam quando o assunto é pobreza; negros, brancos, índios, mulatos e mestiços. Sendo assim, o sistema de cotas, ao beneficiar negros em detrimento de outras etnias, já denuncia racismo. Mas aqueles que comungam com o politicamente correto, preferem silenciar diante dessa injustiça e apoiam o discurso do "coitadinho". Um discurso tacanho que apresenta o negro como inferior e que só consegue algo com um "ajudinha". Pior que isso é aceitar as esmolas e migalhas de um estado que nega a todos um ensino de qualidade.
    A Dra. Leidimar Murr é uma voz dissonante em meio aos discursos consensuais que fazem côro ao pensamento enviesado dos que louvam a mediocridade.

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  3. Quem é verdadeiramente indio ou negro? Somos na realidade mestiços e acho uma injustiça destinar vagas, que seriam preenchidas por critérios de competência, para grupos que muitas vezes permaneceram mais escuros que outros.
    Sou de família pobre, me esforcei muito para ser aprovado num concurso público, fiz sacrifícios para poder dar uma educação melhor para meus filhos, onde a obrigação era do estado, e agora vejo um governo que ao invés de oferecer uma educação de qualidade cria estas opções de cotas para agradar um grupo político que usa sua cor como palanque eleitoral.

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