quarta-feira, 7 de julho de 2010

De Gênios e Encantamentos

Por Paulo Linhares*


Certas pessoas muitos especiais têm a capacidade de jamais morrer; quando chegam em certas quadras de suas vidas simplesmente se encantam, num trespasse do corpo físico, provisório invólucro, mera crisálida, para, quem sabe, uma forma etérea de imago?

Claro, para além das coisas da vida não se aventura a nossa humana e frágil compreensão. Daí que nos interessa tão somente aquela transcendência que alguns mortais incomuns, aqueles situados num patamar bem superior à média das pessoas. À falta palavra mais precisa, apelamos para uma facilitação mística, ao chamar a essas pessoas especialíssimas - que nós, comuns mortais, nem sempre compreendemos - simplesmente de "gênios", porque decerto geniais há de se considerar as coisas que fizeram nessa rápida passagem pelo mundo em que vivemos.

Um desses gênios recentemente se encantou, deixando na orfandade mais completa a lusófona comunidade que se espraia, a partir de estreita costela da Península Ibérica, pela imensidão continental sul-americana, pelas terras africanas ou por antigas possessões incrustadas em antigas nações asiáticas.

Sim, não foi apenas um josé que morreu em 21 de junho deste 2010. Foi José Saramago, um dos grandes intérpretes do drama contemporâneo da existência humana, autor que foi de uma obra vasta que engloba 16 romances, além de obras poéticas, teatrais, contos e crônicas, que lhe valeram o Prêmio Nobel de Literatura de 1998.

Claro, alguns escritores ruins, de terceira linha, já receberam o Nobel de Literatura e gênios literários jamais o receberam (que o diga o argentino Jorge Luis Borges), mas a regra é a premiação dos melhores literatos de cada época. O português Saramago, amante de polêmicas, compunha a regra pois foi um dos maiores escritores de seu tempo. Comentou com sarcasmo, em entrevista, que “...as pessoas costumavam dizer sobre mim ‘Ele é bom, mas é comunista.’ Agora (após o prêmio Nobel) elas dizem ‘Ele é comunista, mas é bom.’ ” Saramago causou quase uma hecatombe por ter comparado - pura verdade - o tratamento dispensado por Israel aos Palestinos ao Holocausto, no que foi acoimado de anti-semitismo.

Por romances como "O Evangelho segundo Jesus Cristo", de 1991, e "Caim", de 2009, embora revelando-se profundo conhecedor da Bíblia, era mal visto pela Igreja Católica, sobretudo pelas críticas que fez ao Cardeal Ratzinger, hoje Papa Bento XVI, porquanto era estranho que ele "...tenha a coragem de invocar Deus para reforçar o seu neomedievalismo universal, um Deus que ele jamais viu, com o qual nunca se sentou para tomar um café, mostra apenas o absoluto cinismo intelectual" do atual papa. Para acender mais a polêmica, afirmou que as "insolências reacionárias da Igreja Católica precisam de ser combatidas com a insolência da inteligência viva, do bom senso, da palavra responsável. Não podemos permitir que a verdade seja ofendida todos os dias por supostos representantes de Deus na Terra, os quais, na verdade, só têm interesse no poder".

Pelas mãos de meu falecido amigo, Francisco das Chagas Pereira, tomei contato com a obra de Saramago há uns quinze anos, quando quase ninguém por estas bandas o conhecia. Pereira me iniciou por aquela que, até hoje, considera-se como a opus magnum de Saramago que é o "Memorial do Convento". Depois, navaguei na sua "A Jangada de Pedra" e li a "História do Cerco de Lisboa", "Ensaio sobre a Cegueira" e, por fim, "As Intermitências da Morte". Leituras fantásticas, todavia, sem afastar uma ponta de receio de desaprender o português brasileiro! Por fim, ressalte-se que, recentemente, o crítico norte-americano Harold Bloom no seu livro Genius: A Mosaic of One Hundred Exemplary Creative Minds ("Gênio: Os 100 autores mais criativos da história da literatura", título da edição brasileira da Editora Objetiva, de 2003), disse que José Saramago era "o mais talentoso romancista vivo nos dias de hoje, bem assim que seria "um dos últimos titãs de um gênero literário que se está a desvanecer".

Bloom tratou-o como "o Mestre". Mestre Saramago que nos ensinou a dura lição de que "...no final, descobrimos que a única condição para a vida existir é a morte". Ave, Mestre Saramago.

* Paulo Afonso Linhares é professor, escritor, pesquisador e Defensor Público Geral do Estado.

Um comentário:

  1. - que seria de nós sem acesso ao legado de tantos gênios, que assim como Saramago, se propuseram a dividir conosco sua percepção apurada e sensível do que é ser... humano?!
    parabéns pelo texto e por dedicar algumas palavras a uma mente portuguesa tão brilhante!


    ** e parabéns, tio Kennedy, pelo blog! =)
    xero grande.

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