Por Licurgo Nunes Neto*
Multiplicaram-se na grande rede os artigos e resenhas que impingem à campanha oposicionista o recurso à baixaria e à calúnia, especialmente aqueles que trazem os argumentos burilados pelo núcleo da campanha petista e espalhados com precisão militar por suas caixas de ressonância, sejam os arremedos de jornalistas mantidos pela comunicação oficial do Planalto, nutridos por contratos sem licitação ou patrocinados por estatais privatizadas pelo PT, sejam as que fazem o serviço pelo mero sentimento de dever cumprido, categoria em que se enquadra a militância petista, a que Lênin atribuía certa utilidade nada lisonjeira.
Grita por atenção o fato de algumas das acusações de boato repercutirem exatamente a enunciação de projetos do PT, o que leva o leitor minimamente atento à ilusão de que suas idéias sobre o petismo estavam completamente erradas esse tempo todo. Mas não há erro algum. O problema reside no fato de o militante petista, como todo revolucionário, ser mestre nas habilidades de inverter sujeito e objeto, de tomar efeitos pelas causas e subverter fatos para fazer valer sua particularíssima versão da verdade. O processo íntimo que sustenta esta mentalidade revolucionária é tema recorrente nos estudos de Olavo de Carvalho, filósofo brasileiro mais odiado pelo progressismo nacional, o que prova o acerto de sua abordagem. A literatura britânica também exemplifica esta característica no livro 1984, de George Orwell, que ilustra uma Inglaterra futurista dominada pelo socialismo totalitarista (com o perdão do pleonasmo), em que o lema do partido é “Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força”. A contradição intrínseca entre os conceitos condensa o dever de qualquer membro do Partido Interno, que é aceitar uma coisa e o seu contrário sem qualquer esforço de transição, o que o autor chamou de “duplipensar”.
Ante esta habilidade mental, qualquer discussão dialética com um militante revolucionário será tão útil quanto tentar explicar a um cego as variações cromáticas do crepúsculo. Principalmente se o intuito é convencê-lo do erro de suas posições ideológicas, donde se depreende que um petista é praticamente imune ao diálogo racional. Resta ao leitor inconformado com as cartilhas planaltinas a única atitude plausível: apontar algumas mentiras essenciais do panfleto e esperar que sua demonstração atinja toda a construção mendaz.
Assim, pode-se refutar a tese de que a candidata Dilma Rousseff é vítima de uma campanha de baixaria apenas apontado as vezes em que ela própria ou os cânones do PT fizeram, ou disseram, precisamente o que chamam agora de boato. Abaixo, tomaremos dois exemplos didáticos.
De início, a questão das FARC. Dizer que é boato a amizade de Dilma Rousseff com dirigentes das FARC, é ignorar que ela requisitou a cessão da Sra. Angela Slongo ao hoje Ministério da Pesca. O documento reproduzido acima é o Aviso n° 1346/CCivil/PR. Foi assinado pela candidata de Lula quando ainda ministra da Casa Civil e jamais teve contestada sua autenticidade.
Angela Slongo é esposa de Olivério Medina, que está no Brasil na condição de refugiado após ter fugido da Colômbia, país em que é processado pelos crimes cometidos à frente das FARC. Após a morte do comandante das FARC Raul Reyes, em operação do Exército da Colômbia, foram encontrados diversos e-mails entre Reyes e Medina. Num deles, em 17/01/2007, Medina informa que a esposa havia se apresentado ao novo emprego “para garantir que ela não fosse incomodada pela direita em algum momento” e completa que ela assumiu algo que “aqui é chamado de cargo de confiança ligado à Presidência da República”. Tem-se então que a Ministra da Casa Civil se ocupou pessoalmente da nomeação de uma funcionária de outro ministério, que não apresenta em seu currículo nada que lembre habilidades em aquicultura, mas que é a esposa de um conhecido integrante das FARC, mencionado por muitos como seu representante no Brasil. Ora, se isto não pode ser visto como atenção, amizade ou consideração por parte da Ministra, só poderia ser subordinação, o que, convenha-se, é muito pior. Não bastasse isto, o governo Lula, por meio de seu assessor Marco Aurélio Garcia, preferiu declarar-se neutro no embate entre o governo constitucional da Colômbia e o bando de narcoterroristas da FARC. O próprio Presidente Lula, em vez de cobrar cadeia para os que inundam o Brasil de cocaína, recomendou ao grupo guerrilheiro a transmutação em partido político, tal como se demonstra a um amigo o caminho das pedras da luta política. Por todas estas evidências, dizer que Dilma Rousseff é amiga das FARC é discorrer polidamente sobre o tema, pois que o trato institucional dispensado ao grupo guerrilheiro em muito se assemelha ao colaboracionismo. Sabendo disso, poderia ser tachado de boateiro alguém que chamasse de amistosa a relação do PT com as FARC?
Agora a questão do aborto. Em agosto de 2010, em plena campanha eleitoral, Dilma disse em debate da Folha/UOL “Eu não acredito que tenha uma mulher que seja favorável ao aborto. Eu particularmente sou contra o aborto. (...) Há uma legislação para o aborto e outro para mulher. Esse equilíbrio é fundamental”. Ante esta posição nada esclarecedora, setores religiosos entenderam que a tal “política de saúde pública” significaria o abrandamento da lei sobre o aborto. Em resposta, o presidente do PT disse que “A questão de aborto nunca esteve no programa de governo da Dilma, portanto não faz sentido você dizer que vai retirar uma coisa que não existiu”. A declaração é oposta à posição do PT, que criticou José Serra quando defendeu a manutenção da lei sobre o aborto, vez que no site do PT está disponível um artigo-resposta das centrais sindicais intitulado “CARNIFICINA É NÃO DESCRIMINALIZAR O ABORTO: UM DIREITO DA MULHER, UM DEVER DO ESTADO”. Esta posição das centrais coincide com uma das resoluções do 3º congresso do PT, de 2007, que traz expresso à página 82 “a defesa da autodeterminação das mulheres, da discriminalização (sic) do aborto e regulamentação do atendimento à (sic) todos os casos no serviço público...”. Ora, ante uma resposta evasiva de Dilma e a luta histórica do PT pela descriminação do aborto, os religiosos tinham motivos suficientes para duvidar da seriedade da posição da candidata de Lula. É neste ambiente de dúvida que surge o vídeo abaixo. Sabatinada pela Folha em 2007, Dilma diz, textualmente, “eu acho que tem de haver a descriminalização do aborto. Hoje, no Brasil, isto é um absurdo que não haja a descriminalização”.
Ante a clareza com que se expressou a candidata, somente uma patológica capacidade de inversão dos fatos para chamar de boato o que é apenas a expressão de um pensamento amplamente documentado. Em vez de defender suas convicções políticas a favor do aborto, o que seria legítimo no plano das idéias, o PT optou por alardear que era vítima de uma sórdida campanha de boataria e calúnia. Pelo caminho, ao ver que seria impossível provar o oposto do que dissera a vida inteira, começou a acusar o opositor de promotor do aborto por ter regulamentado o aborto legal (aquele que a lei permite em casos de estupro e risco à mãe), numa clara tentativa de, pelo menos, igualar os oponentes. Neste processo atende à determinação de Lênin, que dizia “acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é”. O ardil é forçado, mas não faltam tolos para equiparar a disciplina de um aborto já permitido em lei com a virtual extinção da sua proibição. O PT sabe disto. E conta com isto.
A estratégia do boato tem um objetivo claro: forçar uma mudança de pauta. Para isto alerta sobre o risco da perda de foco dos grandes temas da nação, propondo a discussão de projetos de governo. Entretanto, que projetos podem ser discutidos num ambiente em que as verdades documentadas são sufocadas e que a mentira é uma arma permanente da atuação política? Que compromisso pode ter com o futuro da nação um partido que renega seu passado de abortista na esperança de conquistar os votos dos fiéis? Que construção de futuro pode ser discutida se nem o passado resiste ao oportunismo de uma eleição? Como se pode comparar modelos de governo, se o modelo adotado pelo “PT-governo” se ampara em vários temas por ele rechaçados quando era “PT-oposição”, tais como a eleição de Tancredo Neves, a Constituição de 88 (que não assinou), o Plano Real (que perseguiu), a Lei de Responsabilidade Fiscal (que combateu na justiça)?
Ao ver a facilidade com que o PT chama a divulgação de verdades inconvenientes de boato, Mr. Orwell bem que poderia dizer: “Como queríamos demonstrar”. Ele veria um método onde uns poucos enxergam histeria e loucura. Afinal, ele já sabia que esperar de um militante revolucionário o compromisso com a verdade é o mesmo que lhe cobrar a renúncia à sua condição, a deposição de sua principal arma política.
* Licurgo Nunes Neto é Servidor Público Federal e articulista.
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